Carta do Ministro Geral Frei Michael Perry para a Festa de Santa Clara
Carta do Ministro Geral Frei Michael Perry para a Festa de Santa
Clara
Minhas
queridas Pobres Senhoras de Santa Clara,
O Senhor lhes dê a paz!
“Ó Senhor Deus, eis que fui deixada sozinha por ti neste local”.
Provavelmente, reconheceis que esse profundo grito de desolação foi pronunciado
pela nossa Mãe Santa Clara, na vigília de Natal do ano 1252 (1) quando, forçada
à imobilidade por causa de sua grave doença, não pôde unir-se às suas irmãs
para celebrar o Natal do Senhor. Como não ver nesse suspiro o lamento de Jesus,
em sua agonia no Jardim das Oliveiras? E o lamento de muitos dos nossos irmãos
e irmãs, que ameaçados pela Covid-19, sofrem por causa do isolamento tão
angustiante para um coração humano? Naquela noite, Clara experimentou profunda
solidão: Francisco, que com Deus era sua única consolação, estava morto (2); os
frades estavam em conflito; e ela mesma estava sozinha e carregava o peso de
suas enfermidades. É essa solidão que apresenta ao Senhor, e Deus lhe dá a
consolação de escutar os hinos cantados pelos Frades na Basílica de São
Francisco.
Por causa da Covid-19, uma comunidade de Clarissas foi obrigada
a adotar máximas medidas de isolamento. Cada Irmã foi obrigada a permanecer em
seu quarto a fim de facilitar a recuperação e evitar o contágio; além disso,
foi impossível reunir-se no coro e no refeitório. Doloroso e angustiante! Essas
Irmãs partilharam comigo quão consolador para elas foi seguir, por meio de
pequeno rádio, as Liturgias presididas pelo Papa Francisco, escutar suas
homilias que se tornaram base de uma forma de vida reduzida aos seus elementos
essenciais. “Virá a hora […] em que vos dispersareis cada um por si e me
deixareis a sós; mas, eu não estou sozinho, porque o Pai está comigo” (3).
Sim, o Senhor não nos salva da história, mas na história (4),
não nos salva da Covid-19, mas na Covid-19; não nos salva da solidão, mas na
solidão, não nos salva do medo, mas em nossos medos.
E o medo não se tornou nosso destino quotidiano e nosso
companheiro, desde o início desta pandemia? Medo do outro, do qual nós nos
devemos proteger; medo do lobo que entrou no redil, medo do mal em ação dentro
de nós, medo de transmitir a morte ao outro, medo, que se torna pânico, quando
o vírus faz seu trabalho mortal em nossos entes queridos e quando nossos
sintomas, improvisamente, dão sinais alarmantes. Como trememos diante da morte
do Pobre Crucificado que, asfixiado, entrega seu espírito nas mãos do Pai! Se o
coronavírus mexe conosco tanto assim, é porque toca o respiro vital dentro de
nós e o destrói … Medo, também, da separação e do abandono que algumas de vocês
experimentaram quando foram forçadas a confiar uma de suas Irmãs aos cuidados
hospitalares, quando a viram ir sem poder estar com ela no momento da grande
passagem. O que mexe com a gente é que a morte de Santa Clara parece ter
acontecido num clima de surpreendente presença celeste: Clara vê chegar a ela o
Rei da Glória (5), uma Irmã vê uma multidão de virgens aproximar-se em
procissão ao leito da santa e a Virgem das virgens, maternalmente, inclinar sua
face ao rosto de Clara (6). Falando à alma de Clara, sussurrou: “Vai em paz,
pois terás boa escolta” (7). Quando é aberta a porta à Comunhão dos Santos,
pode-se morrer a sós?
“Irmãs e filhinhas minhas, não temais, pois se Deus está
conosco, os inimigos não nos poderão ofender. Confiai-vos a Nosso Senhor Jesus
Cristo, Ele vos libertará” (8). Depois de diversas semanas no longo túnel da
Covid-19, as Irmãs me disseram que o Bom Pastor havia mantido sua promessa:
“Ninguém arrancará minhas ovelhas de minha mão” (9). Elas são agradecidas por
toda a solidariedade recebida, pelos atenciosos e competentes cuidados médicos,
pela intensa oração, recebida de todas as partes, preces de jovens e idosos,
que foram elevadas ao céu a fim de livrá-las da doença.
Raramente resulta em prazer tomar o lugar do leproso, de quem os
outros fogem. Mas, quando nos deixamos amar naquela situação, quanta doçura
nasce, que espaço de acolhimento, comunhão e caridade se abre! Também, outra
comunidade respondeu, generosamente, aos apelos dos pobres diante de sua porta,
apesar de estarem preocupadas pelas dificuldades financeiras que foi preciso
enfrentar por causa do confinamento e, com surpresa, também os benfeitores
bateram à porta do mosteiro a fim de oferecer sua contribuição. Em sua grande e
secular experiência, a Igreja implora ao Senhor para libertar a humanidade “da
peste, da fome e da guerra”. Sabemos que a crise sanitária leva a uma crise econômica,
que, infelizmente, pode levar a uma crise social. De fato, muitas de vocês
partilham essa preocupação para o futuro, com os próprios entes queridos
golpeados pela perda do emprego. Mais do que nunca, somos convidados a confiar
na Providência, porque até agora, o Senhor não nos tem abandonado, nem nos
abandonará. Viver na simplicidade, evitando todo desperdício; viver em
solidariedade e esforçar-nos por praticar todo bem que nos é possível.
Talvez este acontecimento será também a ocasião para construir
um novo mundo, baseado não mais sobre o paradigma da globalização em nível
comercial ou cultural, mas sobre uma volta ao local, à família, ao regional
(10). Não podemos sonhar uma nova visão do trabalho, dos negócios e da economia
mais inclusiva e baseada na solidariedade, onde a alma e fragilidade serão seus
fecundos fundamentos?
Contamos com vocês e com a sabedoria de seu estilo de vida, a
fim de ajudar-nos a ousar sermos novos depois dessa crise. Inesperadamente e
bruscamente, durante as fases da quarentena, fomos obrigados, como vocês, a nos
mantermos em espaços restritos e por longo tempo. Foi um contraste totalmente
anormal diante do nosso anterior modo de viver nessa sociedade, caraterizada
por espaços amplos (viagens, conexão social, etc.) e ritmos frenéticos (“tudo e
imediatamente”, velocidade sempre maior, etc.). Alguns, que tiveram essa
experiência, recordarão apenas a sofrida limitação da liberdade, o desafio de
se achar diante das próprias dinâmicas sociais, a violência relacional por causa
da falta de comunicação, a falta de perdão, a falta da aceitação do outro. E
percebemos a riqueza de testemunho de vocês: a clausura é pequeno campo de
batalha no coração do planeta, onde vocês nos ensinam não tanto a fuga mundi quanto a
fugir da fuga do mundo (11), onde nos ensinam a viver na profundidade do
espaço, a entrar na cor das diferentes horas do dia e no kairós de Deus,
alternando palavras e silêncio a fim de construir relações de comunhão com a
ajuda do Espírito. É comovente que algumas de vocês, tendo infelizmente perdido
a celebração eucarística, centro da jornada, aceitaram essa situação como apelo
para viver e reforçar o “sacramento da coirmã”.
O sacramento da irmã não só torna presente nosso irmão Jesus,
mas é também portador de salvação e saúde, porque temos experienciado que
cuidando de nós mesmos, estamos cuidando de nossa irmã. Da mesma maneira, nossa
irmã, cuidando de si mesma, está cuidando dos outros.
Seus mosteiros são reservas de paz, serenidade, esperança e
compaixão para aqueles que estão na primeira linha, na batalha. Na impotência
que temos experimentado com vocês, porque não podendo sair para ajudar doentes
e pessoas necessitadas, ousamos rezar em intercessão com vocês. Rezar não
apenas por nós mesmos ou por aqueles que estão na solidão ou doença, mas também
por aqueles que arriscam a saúde e a vida, ao cuidar dos outros.
Com nossa Mãe Santa Clara, tende o olhar fixo no Pobre
Crucificado, escutai-o clamar: “Ó vós todos que passai pelo caminho, parai e
olhai se há dor semelhante à minha dor”. Respondamos em uníssono, com um só
espírito, a ele que clama e se lamenta: “Não me abandonará jamais a recordação
de ti e se consumirá a minha alma” (12). Que a compaixão, que vocês podem
mostrar como a de um coração de mãe, possa tornar-se perfume aromático (13),
capaz de consolar assim muitas pessoas aflitas e enfermas, sustentar os
profissionais da saúde tão generosos e dedicados, encorajar as famílias e
inflamar os corações dos jovens que o Senhor está chamando ao seu seguimento.
Compaixão significa “sofrer com”. Este pequeno vírus nos ensinou
que estamos todos na mesma barca; ele ataca indiscriminadamente ricos e pobres,
poderosos e pequenos, justos e pecadores. Em solidariedade com a humanidade
sofredora, ajudem-nos a perseverar na oração a fim de esperar contra toda a
esperança: “Nosso auxílio está no Nome do Senhor!” (14). Essa solidariedade
transforma os limites dos confins humanos, a fim de incluir cada pessoa humana,
cada ser vivente, permitindo-nos abraçar nossa verdadeira identidade de seres
interconectados, que vivem numa casa comum. Essa consciência nos ajuda a
assumir o papel que Deus nos tem dado quais promotores de dignidade e
protetores da comunidade humana e do ambiente,
Laudato Si’.
Este ano comemoramos o testemunho dos primeiros mártires
franciscanos, trucidados em 1220: viveram o martírio do sangue. Não é dado
também a nós, como a Santa Clara, de viver o martírio da paciência (15), a
“paixão da paciência”? (16) Ambos são frutuosos: se Tertuliano pôde dizer que o
sangue dos mártires é semente de novos cristãos, não vale o mesmo para o
suor/fadiga da paciência?
Minhas caríssimas Pobres Senhoras,
Boa Festa de Santa Clara!
Frei Michael Anthony
Perry, OFM
Ministro Geral e Servo
Roma,
25 de julho de 2020, Festa de São Tiago
1.
Proc III, 30 / 2. TestC 38 / 3.Jo 16,32. / 4 Cfr. João Paulo II, homilia
de 8 de dezembro de 2004.
2.
Proc IV,19. / 5.Proc XI,4. /6. Proc XI,3. / 7.Proc III,18. / 8.Cfr. Jo
10,28. / 9.Cfr. Giuseppe Buffon, Il futuro sotto la mattonella –
Osservatore Romano, 24 abril 2020. / 10. Cfr. Frei David d’Hamonville, Abbot
of En Calcat, La Règle, La communauté et la règle bénédictine, Vivre ensemble
longtemps, KTO broadcast. / 11. 4LAg 25-26. / 12. Cf. Jo 12,1-8.
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